domingo, 9 de fevereiro de 2014

MORTO - TRECHO


                Eu estou morto. No entanto, meu chefe está bem na minha frente, horizonte distante do outro lado da mesa, esbravejando, descumprindo a regra de um feedback daquela natureza, e não por esquecimento ou desconhecimento.  Estamos sozinhos na sala por que ele está me ameaçando. O mais engraçado e paradoxal é que eu não estou dando a mínima, para ele, para o emprego, pois eu estou morto, e sei lá por que não me levanto.
                Como assim estou morto? Não se trata de metáfora ou ficção o que vivo, ou melhor, o que morro (belo clichê) desde antes de ontem pela manhã. Trivialmente engraçado no terceiro dia, posto que não ressuscito, mas sim morro, de um morrer bizarro e móvel, diferente da inércia ordinária de um defunto. Não se trata de uma olimpiana posição de Brás Cubas, assim como meu caso é distinto do Pirotécnico Zacarias, posto que ninguém sequer desconfia de minha condição, e some-se as minhas distinções o fato de que não vou tecer aqui panorama pessimista e severamente crítico de meus contemporâneos.
                Há três dias não partilho mais das necessidades dos vivos: paixão, desejo, fome, sede, vazio. Por isso eu poderia mandar meu chefe às favas quando por fim me chama de imaturo e diz que preciso ser mais flexível, se referindo na verdade a uma necessidade de que eu faça vistas grossas e não barre na minha etapa do processo as falcatruas perpetradas pelo bando dele com o dinheiro público. Mesmo em posição totalmente vantajosa, eu me calo e saio cordato, ainda que eu não vá cumprir com aquela promessa. Sinto que se eu tivesse reagido, bem provavelmente, meu coração voltaria a bater, minha pele voltaria a rosear-se, minhas olheiras cederiam, assim como a esclera totalmente vazia de meus olhos sairia de sua imensidão branca para sua natural condição de circundante da Iris.
                Como as pessoas podem não estar percebendo? Estou péssimo, pele ressecada, algo como rigor morte, olheiras enormes e pretas, os olhos vazados, apenas o branco tomando toda sua extensão; verdade seja dita, amarelado. Quinze para meio-dia, ritualmente, saio para o almoço, decido assim que levanto que não irei retornar ao trabalho para o segundo turno, vou a um café.  Defunto, do Latim DEFUNCTUS, formado por DE-, “fora, afastado”, mais FUNCTUS, particípio passado de FUNGI, “realizar, efetuar, cumprir”. Em suma, defunto é aquele que realizou, levou a termo, cumpriu a sua vida. Talvez minha particularidade seja então um problema semântico, afinal se tem algo que eu sou é um completo descumprir, adiar-se, não-fazer-se.
                No café, depois da reflexão espirituosa, ou pretensamente, sobre FUNGI, fiquei apagado, inerte, sujeito a imagens que surgiam e sem estimulo que não a inércia deixei-me vagar como entre sombras na minha mente.
                Lembrei de minha mãe, a gente andando, não sei o porquê,  estávamos sempre andando. Acho que mamãe fugia de algo e eu não entendia nada, não entendo agora, só sofria a dor nas pernas já que ela não podia me carregar, não aguentava. Andávamos até a casa de vovó, andávamos até uma pracinha onde eu só tinha como brinquedo meu carrinho de plástico, o escorregador e toda a terra descoberta. Mamãe pensava, fumava e ficava calada.
                Lembrei de papai, sua ausência, sempre em casa somente muito tarde. Trabalhava como um burro. Foi o que fez a vida toda.
                Lembrei de uma briga na escola, lembrei de um beijo, o primeiro que lembro que dei.
                Lembrei de Vera, acho que nunca passou nosso término esquisito, assim como foi o relacionamento. Ela foi vítima de estupro, em casa, um primo, seu pai a culpou, a mãe aceitou resignada, e sobrou pra ela lhe dar de verdade com aquela violência, totalmente sozinha, sem uma solução fácil como a dos pais, pois havia sêmen e sangue em sua alma. Vera sempre se abria e deixava me aproximar quando estava bem, o que durava pouco tempo, então me afastava, quando eu recuava ela sofria e fazia este entra e sai de sua intimidade. No sexo me pedia para bater bem forte, estocar sem delicadeza, machuca-la de formas diversas. Ela revisitava o estupro, quando percebi não mais conseguia meter-lhe mais sem um certo desconforto, assim como ela não deixou mais de chorar baixinho depois que transávamos e apesar de dizer que era de prazer, que era a reação dela, eu sabia que não era mais. Um dia acabou. O café esfriou sem que eu tomasse. Levanto-me, vou pra casa.

                Ontem por um momento duvidei do que me ocorria, subi no sexto andar daquele prédio que fica ao lado do espaço onde outro prédio velho foi demolido, ali eu poderia cair sem ser visto. Olhei para baixo, não senti vertigem como sempre sinto, não senti medo, nada, até que um pombo pousou do lado de fora da janela e me fitou com olhar vítreo. Isso é a vida, pensei, uma imundice, piolhenta, que voa; depois a estranheza e nojo do pombo passou, ele dando de um lado para o outro no parapeito, pelo vidro, me fitava. Fiquei novamente sem nada, aquele pombo não fazia o menor sentindo. Abri a janela e o pombo voou. 

segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

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